PRA MIM ESCALADA É ALGO POR AÍ DÁ UMA LIDA...

fenomenologia na montanha



Fitz Roy e pilar casarotto vista aérea. foto da internet

Antes do nascer do sol, começa a corrida, a escalada descobre o espaço. No avião
o viajante surpreende-se por vezes com a dimenção da visão que se tem a partir das
janelas ao mesmo tempo em que , no interior do habitaculo veloz, confinado aos
limites estreitos de sua poltrona, seu corpo dorme.
Em contrapartida, quando as mãos se agarram a rocha até sangrarem, quando o peito,
o ventre, as pernas, e o sexo ficam paralelos a parede, quando em conjunto as costas,
os musculos, os sistemas nervosos, digestivos e simpaticos participam sem reservas
da abordagem fisica do relevo, em uma relação de luta aparente e de sedução real,
do mesmo modo a pedra ao ser tocada perde sua dureza e, amada, ganha uma
surpreendente doçura.
Todo mundo conhece os riscos que se correm na montanha, nela, até mesmo os mais
prudentes alpinistas morrem por acidentes.
De onde advem a intensa experiencia daqueles que calmamente se consagram a uma
paixão de reputação tão perigosa? Em determinado momento, paro e “ponho mãos a
obra”; a verdadeira montanha começa e eu a escalo. Atingido pela neve, aniquilado
pelo sol, retorcido pelo vento, reduzido ao silencio pela respiração curta, o conjunto
de cordas se estende sobre o paredão. Sem que se espere, ao menor passo em falso
o peso se vinga. Essa rudeza leal ensina a verdade das coisas, dos outros e de si
mesmo sem qualquer fingimento. Na montanha, qualquer hesitação, rotas
equivocadas, mentiras ou má fé equivalem a morte.
Durante algumas subidas noturnas aos alpes, ou ainda em outras rarissimas ocasiões,
fui subitamente inundado, transbordado, coberto saciado, possuido por uma soberana
alegria, continua e tão intensa que pensei que meu peito fosse explodir, que todo o
meu corpo levitava, presente por todo o espaço do mundo que estava todo presente
em mim. Essas experiências aconteceram em momentos em que eu me alimentava
muito pouco, bebia apenas agua e toda minha atenção nervosa e muscular era
requisitada na escalada.
Quando a inclinação diminui, o alpinista se ergue. Da mesma maneira que um pintinho
quebra a casca do ovo ou como uma garotinha que caminha, nosso ancestral
quadrumano precisou rasgar sua membrana. Dois pes tropeçam sobre os
pedregulhos, a cabeça nua, parida, solta, livre ao vento, ao sol, ao frio, se colocam
em perigo num falso equilibrio entre movimento e liberdade.
O Humano ereto acaba de nascer.



Livre adaptação sobre a obra de Michel Serres

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