Agora o texto do Edmilson Padilha:
Escalei esta mítica montanha em 2005, acompanhado pelo argentino Gabriel Otero e pelo catalão Isaac Cortes. Foi uma escalada que mudou minha vida. Era como se tivesse adentrado um mundo proibido. À meia-noite, numa terça-feira de carnaval, estava guiando a última cordada de artificial da Via do Compressor. Às duas da madrugada do dia 9 de fevereiro caminhávamos sobre o cogumelo de gelo da montanha mais mítica e mais controversa do mundo, o Cerro Torre. Antes de mim, dois grandes escaladores brasileiros haviam conseguido o feito: Luis Makoto Ishibe, em 1990 e Alexandre Portela, em 1992. E agora, há alguns dias, Ricardo Baltazar, o Rato, a escalou, antes que ela deixasse de existir. Explico: a Via do Compressor, a que usamos para atingir o topo da montanha, tal como a escalamos, não existe mais!
Para entendermos essa história devemos retroceder até 1952, ano em que começa a saga do Torre. O famoso escalador francês Lionel Terray escala o Cerro Fitz Roy, algo extraordinário para a época, observa o Cerro Torre de longe e afirma “que enfim viu uma montanha pela qual vale a pena arriscar a vida!”. Estava dada a largada para a corrida ao seu topo. Porém, na década de 50 as coisas não eram tão simples e somente em 58 partiram da Itália duas expedições rivais para conquistar a montanha impossível. Numa delas estão Cesare Maestri e Cesarino Fava e na outra Carlo Mauri e Walter Bonatti, considerados como alguns dos melhores escaladores da época. Eles não obtém nem um vislumbre de sucesso. Porém, em 1959 Maestri retorna com Toni Egger, austríaco e especialista em gelo. Atacam a vertente norte e, supostamente, atingem o topo da montanha em meio a uma tempestade. Na terrível descida uma avalanche carrega Egger para sempre e Maestri consegue milagrosamente descer. É encontrado por Fava quase sem vida vagando pelo glaciar e retorna à Itália como herói. Mas, como sempre, com esta montanha a polêmica nunca acaba, e, passados alguns anos começam a questionar Maestri sobre alguns detalhes que ele dera da via incompatíveis com a realidade encontrada por cordadas posteriores.
Nos anos seguintes muitos escaladores de diversas nacionalidades congelam suas mãos pelas fissuras da montanha. Em 68, uma expedição anglo-argentina esteve perto de conseguir escalar a aresta sudeste. Como sempre, os gringos não escutam os latinos, desdenham do estilo leve do grande escalador argentino José Luis Fonrouge e falham na sua tentativa de fixar muitas cordas. Em 69, Mauri retorna e abandona a escalada a tão somente 200 metros do cume tentando uma via pela face oeste. Mauri afirma: “aquele que fotografar as formações de gelo do cume do Cerro Torre poderá reclamar verdadeiramente os direitos de ter ido além dos limites do extremamente difícil”. Estas palavras são afirmações diretas contestando a conquista do Torre e ferem os brios de Maestri que retorna em 70 para conquistar o cume a qualquer custo. Traz consigo um controvertido compressor para colocar uns 350 grampos na montanha, atitude antiética (naquele local) e rejeitada pela comunidade escaladora mundial. Para aumentar a polêmica ainda se nega a chegar ao topo alegando que aquele cogumelo de gelo nem faz parte da montanha. Em 1974 entra em cena novamente um dos grandes nomes da escalada na Patagônia: Casimiro Ferrari, que fazia parte da expedição de Mauri de 69. Ele sente-se profundamente atraído pela Patagônia, volta à parede Oeste e conquista a Via Ragni, mais conhecida como Via Ferrari, considerada uma das melhores escaladas em gelo do mundo. São 1200 metros com gelo de até 95º de inclinação. Atualmente é considerada a via de conquista do Cerro Torre. Ferrari fica para sempre na Patagônia, vivendo até o fim de sua vida às margens do lago Viedma.
E a Via do Compressor ficou lá esperando até 1979 o americano Jim Bridwell repeti-la e visitar o cume pela primeira vez por meio desta rota. Nesta época Maestri estava totalmente desacreditado e foi mais criticado ainda quando Salvaterra e Mabboni conquistaram uma variante na Compressor desviando uns 100 grampos da “escada” Maestri. Já em 2005 a atenção se volta novamente para a montanha travessa quando Salvaterra, Garibotti e Beltrami conquistam a Arca de los Vientos na face norte e afirmam não ter encontrado nenhum vestígio daquela via de 59 de Maestri acima de 300 metros da nova rota.
Em 2006 volta a polêmica da Via do Compressor quando aportam em Chaltén os americanos Josh Wharton e Zack Smith e dizem que vão arrancar os grampos da via. Desistem da idéia depois de uma votação levada a cabo pela comunidade escaladora presente na região. Mesmo assim conseguem encontrar um caminho diferente dos grampos do Maestri e conquistam uma variante que chega a menos de 200 metros do cume por “meios justos”. Isso reacendeu a polêmica da via, levando a uma discussão na mídia. Trouxe opiniões a favor e contra e, na verdade, é uma discussão sem fim, porque todos têm bons argumentos. A via faz parte da história, muitos a escalaram e muitos querem ter uma chance de pisar no topo desta montanha. Por outro lado, não foi conquistada de maneira justa, pois não se seguiu a ética local que é a de escalada alpina, limpa, com o mínimo do mínimo de proteções fixas. Tudo bem, não vamos chegar a um veredito.
Aí, em 2011 vêm dois gringos e quase completam a via escalando limpo, faltando apenas os últimos 40 metros. Foram Jason Kruk e Chris Geisler. Finalmente chegamos ao porquê de eu contar a vocês tudo isso: Jason Kruk volta em 2012 com Hayden Kennedy terminam a Via do Compressor sem usar quase nada dos grampos do Maestri e na descida arrancam 150 deles, impossibilitando para sempre quem queria repetir esta via da mesma maneira que era feito até agora. Só pra se ter uma idéia da confusão, tem gente os querendo mortos e outros os chamando de heróis.
Fazendo-se um resumo a coisa é mais ou menos assim: Maestri conquistou a via da pior maneira que se poderia fazer, negligenciando uma lei da montanha que é não ferrar com as gerações futuras, ou seja, não matar as possibilidades do futuro. Ele abriu um caminho artificial numa montanha que poderia ter sido escalada de maneira natural, por assim dizer. Por outro lado, a via é de 1970 e faz parte da história desta intrigante montanha. E os americanos simplesmente não consultaram a comunidade escaladora, chegaram, escalaram, arrancaram os grampos e os levariam como troféus. Então, o melhor é não julgar. Bem, eu não poderia julgar, pois já escalei esta via, e posso afirmar que não é fácil. Muitos escaladores de renome internacional já a tentaram sem sucesso. E agora ficou mais difícil e ficou estranho contar que escalei uma via que não existe mais da maneira como a escalei. Meus parabéns ao Rato pelo cume do Cerro Torre e pelas outras montanhas que já escalou na região!
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